terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O Pequeno Deus da Comparação

Todos no mundo reconhecem o belo como Belo e, desta forma, sabem o que é o Feio.
Todos no mundo reconhecem o bem como o Bem e, desta forma, sabem o que é o Mal.
Assim, o ser e o não-ser geram-se mutuamente.
O longo e o curto se delimitam; O alto e o baixo se inclinam
O tom e o som se harmonizam; O antes e o depois se seguem um ao outro.
(Tao, Lao-Tsé, Livro I)

Dentro de nosso panteão há o pequeno Deus da Comparação. Em uma mão ele carrega uma folha branca e, na outra, uma folha negra. Toda vez que este pequeno Deus age, primeiro coloca a folha branca atrás de um fato ou objeto e, em seguida, faz o mesmo com a folha negra.
Não que pensar nas coisas seja o forte do pequeno Deus Comparação, ao contrário, dedica sua existência à mostrar o contraste e a diferença entre as coisas.

Pequenos Deuses

Em se tratando de Deuses, temos que andar com cuidado. Existem pessoas que admitem apenas um e super-poderoso Deus, que tudo vê, tudo pode, tudo tudo.
Não é uma escolha inteligente.
Um Deus médio, com médios poderes é confusão de bom tamanho para o crente. Imagine se num deslize, humano, humano, o crente desagrada o Deus médio? Já imaginou um Deus com médios poderes entrando em sua casa, zangado, quebrando tudo (especialmente você)?

Pois se um Deus médio é confusão grande, um Deus único e super é absolutamente temerário. O crente realmente sábio opta por um panteão de pequenos Deuses.

Assim a Sacra Goliae Conphraternitas, mediante módica quantia mensal, oferece para seus seguidores um panteão repleto de pequenos Deuses, capazes de suprir todas as necessidades do crente mais exigente.

Denominamos nossa escola religiosa de Politeismo Esclarecido. Bem-vindo e coloque o dízimo no débito em conta, por favor.

A Doutrina

Estando curiosos sobre a doutrina da Sacra Goliae Conphraternitas, seria correto dirigir-se aos mestres.

Depois de fazer o copo de cerveja confessar que vazou sozinho já mais de vinte litros de cerveja, o Imponderável Re-K-Nello levanta os olhos vermelhos, abre a boca e deixa entrever a língua pastosa. Arrastando a língua diz:


- Eeeiu pdriaa a discher quió (faremos a tradução simultânea da sagrada linguagem filosófica peripatética parada, para melhor compreensão...) Amigo, Irmão, chegue e sê bem-vindo! No início, em verdade, ponderamos muito sobre a natureza humana, sobre as questões fundamentais da existência, da felicidade e da natureza.

Você perguntaria sobre o nome da escola, peripatéticos parados.

- Em verdade, Irmão, ministramos nossas aulas durante caminhadas – responderia Lord K-Rion – Nossos rituais determinam que a cada dúzia de sacrifícios de loiras geladas, devemos prestar homenagem ao Deus do Trabalho. Assim, vamos ao Templo WC (Work God – a letra G caiu um pedaço), e ofertamos todas as loiras geladas que consumimos, devidamente processados pelo nosso organismo. Ainda em respeito ao Trabalho, proferimos o cântico: “uffff – ahhhhh”. Na volta do Templo, entre a porta daquele e a mesa, falamos o que achamos sobre o Trabalho e o Vagabundismo Esclarecido. Então peripatético vem desta longa caminhada, e parado porque temos que parar e sacrificar mais loiras geladas !

- Nossa relação com o Deus Trabalho – diz o Imponderável Re-k-nelo – é bela e complexamente difícil. Este Deus é muito poderoso e, por isso, não podemos, nem queremos, ocupar muito de seu tempo. Portanto, deixamos a maior parte de nosso trabalho para outros. Tão modestos somos, que fazemos questão de que todos os demais pensem que estamos ocupando muito o Deus Trabalho (que somos egoístas), mas em verdade mantemos ele ocupado só com nossas oferendas no templo. Nos apresentamos diante do Deus Trabalho apenas com o indispensável para que os outros achem que somos muito devotos, apenas com o suficiente para termos acesso ao sagrado recolhimento mensal de verbas (aleluia, salve o santo salário). Assim, e eventualmente, até nos devotamos ao Deus Trabalho quando é necessário, louvando o que seria nossa parte e até a parte dos outros, mas para que, no futuro, possamos, finalmente, deixar toda atenção do Deus Trabalho para nossos colegas amados!

Então irmão, se lhe agrada a filosofia do Vagabundismo Esclarecido, procure uma cadeira, sente longe do irmão Rinus, o Sungulinus e pegue uma loira gelada para o sacrifício.

O Liceu

Em lindos jardins, entre a luxuriosa natureza por onde sopram ventos temperados com o cheiro dos salgueiros, homens sábios de barbas brancas trilham caminhos de seixos já gastos pelos pés dos alunos que os ouvem atentamente. Falam sobre a natureza, o homem, a metafísica e a busca da felicidade. De tempos em tempos param,olhando fixamente as nuvens no céu azul, tentando descobrir o poema secreto escrito pelos Deuses.


Se você procura o Liceu da Sacra Goliae Conphraternitas, o porteiro do parque terá a bondade de indicar para que você vá...


Ao outro lado da cidade. Um bar de paredes que um dia foram caiadas, próximo do porto, mais precisamente instalado abaixo de um bordel que fica no andar de cima e ao lado de um curtume.


Tente entrar.


O cheiro não é o que se pode chamar de perfume da natureza. Apesar desta impressão, boa parte do odor vem de coisas que morreram de causas naturais.


Ahhhhhh!


Sinta o perfume das famosas cebolas envoltas por fatias de peixe frito em conserva, que antes de estarem dentro de um balcão aquecido por uma ou duas semanas tinham uma vaga lembrança de como era o mar.

Os tipos mais estranhos estão desmoronados por aqui e por ali.


Alguns apoiados no balcão apenas pela barriga protuberante, desacordados por dias. Outros aproveitam os muitos pontos onde a iluminação não existe mais, por terem as lâmpadas queimado ou por terem sido arrancadas pelos fregueses, para transações duvidosas com as moças que ocupam o andar de cima.

Bem próximo ao balcão você verá uma mesa especial. Além do fato de ser a única que possui quase todas as pernas e algumas cadeiras com encosto, um grande sujeito, cabeça totalmente raspada, encara um copo de cerveja como se tentasse fazê-lo confessar algum crime. Outro coça ambas orelhas simultaneamente, como que admirado pela própria habilidade ou pelo conteúdo extraído. O primeiro é o Imponderável Re-K-Nelo, o segundo o Sublime Lord K-Rion, divulgadores da mais revolucionária doutrina metafísica desde Aristóteles, o Vagabundismo Esclarecido.

Na mesa, dedicados às tarefas pensativas prescritas pelos mestres, os alunos Tortugos, o Quelonicósmico, com a barriga de fora, tentando sincronizar o umbigo para dublar o amigo Azed-Ume, o Cítrico, que canta Eduardo e Mônica de trás para frente e fazendo as vozes de com a irmã Femilli, a portadora da sagrada cerveja. Novo discípulo na escola, Cidharta, o Brahma-chopp das Índias Orientais tenta fazer, com seu umbigo, o acompanhamento em backing-vocals da melodia. Verá em diversos graus de consciência outros discípulos, como Duasflor, o cor-de-rosa numa conversa animada com o espelho, onde faz a afirmação, a réplica e a tréplica, com cada um dos cotovelos enfiados em um diferente prato de sopa fria e gordurosa. Sem se deixar abater pelos sujos cotovelos, Tatuíra, o que vive nas areias, tenta dar cabo do que sobrou da sopa com um pedaço de pão velho. Debaixo da mesa, o irmão Sem-Nome tenta tirar a própria cueca pela cabeça, assistido e ajudado pela irmã Sylências, a que fala pelas orelhas. Amarrado, amordaçado e balançando junto ao lustre, ainda se pode ver o caçula Minimus, pequeno entre os grandes.


Se você conseguir passar incólume pelo Irmão Rinus, o Sungulinus, que se encontra acorrentado ao pilar que sustenta o teto, e ainda atrair a atenção dos mestres respectivamente de sua cerveja e/ou orelhas, poderá perguntar de que, afinal, trata esta brilhante escola filosófica, conhecida também como Peripatéticos Parados.